sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Parecer sobre USUFRUTO - estudo de caso

Relatório

Trata-se de um estudo de caso proposto pela prof. de Direito das Coisas II. Narra os fatos que a Sra. MARIA JUREMA PEREIRA JURIS, procurou um escritório de advocacia para encontrar uma solução ao seguinte caso:
Segundo a consulente, sua mãe Sra. VÍRGINA PEREIRA e seu pai Sr. JÚLIO PERIRA, doaram a propriedade do único imóvel que possuíam a filha mais velha, Sra. JANETE PEREIRA RUT. A doação ocorreu sem anuência da consulente, que na época era menor de idade. A doação foi realizada por Escritura Pública, com cláusula de reserva de direito de usufruto vitalício aos doadores e com cláusula de reversão.
Passados alguns anos, o pai da consulente veio a falecer. A usufrutuária, no caso a filha mais velha Sra. JANETE PEREIRA RUT, tinha um filho. Como na ocasião a usufrutuária estava em processo de separação judicial, a mãe da consulente e sua irmã mais velha resolveram doar a propriedade do referido imóvel ao filho da, até então usufrutuária.Com isso, levaram a avó do menor até o Cartório onde esta assinou escritura de doação, com renúncia do usufruto anterior. Na Escritura Pública Registrada, o único imóvel de propriedade da mãe (e avó do neto) foi doado para o neto com cláusula de usufruto em benefício da mãe e da avó, porém sem cláusula de reversão.
Ocorre que mais tarde, a mãe do nu-proprietário (filho menor) veio a falecer, extinguindo o usufruto de sua parte. A avó do menor, agora com idade avançada, residia na casa grande (parte da frente do prédio). O neto casa e constrói uma casa nos fundos do prédio. Entretanto, a avó precisava de atenção especial, pois já não tinha mais forças para realizar as tarefas do dia a dia. Ocorre que o neto ficava alheio a situação de avó e não dava nenhum cuidado necessário.
Por fim, a avó foi internada no asilo. Como para poder se manter no asilo dependia de dinheiro, a avó resolveu então alugar a casa onde residia, pois entendia ser usufrutuária daquele imóvel, conforme constava na Escritura Pública. Contudo, o neto não permite que se alugue tal imóvel, pois entende ser seu todo o prédio e que inclusive, já reformou a edificação, gastando aproximadamente R$ 8.000,00 (oito mil reais). Ainda alega o neto que ganhou a propriedade dos pais e não tem nada a ver com avó.
Diante de tudo isso, a filha mais nova, chocada com toda a situação busca uma solução jurídica para o caso.
Diante do exposto e sem analisar qualquer documento probante, passa-se à exposição do meu entendimento.

Considerações Preliminares

No intuito de melhor encontrar uma solução, faz-se necessário a abordagem de alguns pontos, até porque, pode-se oferecer mais de uma solução jurídica. A começar, impende transcrever os direitos do usufrutuário:

Art. 1.394 do CC – o usufrutuário tem direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos.

Nas palavras do doutrinador Ricardo Fiuza, “usufrutuário é o que detém os poderes de usar e gozar a coisa mediante sua exploração
[1].” E mais, segundo Sílvio Rodrigues,
“a transferência da posse é elementar ao usufruto, pois o usufrutuário, titular que é de um direito real exercitável diretamente sobre a coisa, tem, naturalmente, o mister de havê-la à sua disposição. [...] compete ao usufrutuário a percepção dos frutos, este é o seu principal direito e consiste na fruição da coisa, colhendo os frutos naturais ou civis por ela produzidos
[2].”

Desta forma, na hipótese de se considerar válida a doação realizada, o que se admite apenas por argumentação, é totalmente plausível que a avó do neto use o referido imóvel para perceber os frutos de um aluguel. Já é matéria solidificada na doutrina e na jurisprudência dos Tribunais, que o usufrutuário, enquanto usufrutuário, tem direito aos frutos percebidos pelo uso de coisa alheia.
Agora, a de se analisar o instituto da doação, uma vez que, dos relatos narrados, visualiza-se a ocorrência de pelo menos duas doações. Em relação a primeira doação realizada pela mãe e pelo pai da consulente da consulente, sua revogação deveria ter sido pleiteada dentro do prazo de 1 (um) ano quando a consulente tomou conhecimento do fato e completou a maioridade. Analogia do art. 559 do Código Civil que trata do prazo decadencial para revogação judicial da doação.
Já em relação a segunda doação realizada, novamente sem anuência da consulente, passo a tecer as seguintes ponderações. Ambos os contratos de doações seguiram o rigor da Lei, foram realizados por escritura pública como prevê o art. 541 do Código Civilista. Por ser um ato de liberalidade do donatário, no segundo caso, uma liberalidade a avó e da mãe do neto, este contrato implica em certas obrigações.
No caso em tela, a doação realizada pela mãe do menor e pela avó possuía cláusula de reserva de usufruto, ou seja, o imóvel doado ao neto seria usado e gozado pelas usufrutuárias. Ao neto, cabia a obrigação de cumprir com os encargos da doação recebida, conforme prevê o art. 553 do Código Civil, in verbis:

Art. 553 – o donatário é obrigado a cumprir os encargos da doação, caso forem a benefício do doador, de terceiro, ou do interesse geral.

A doação efetuada era em benefício das próprias doadoras, por isso a cláusula de usufruto, e também, do interesse geral da família, pois todos queriam que a avó tivesse sendo amparada pelo neto. Entretanto, o neto passou a ser ingrato com sua avó, abandoando-a completamente. Inclusive, por se tratar de pessoa idosa, o neto descumpriu um preceito constitucional de amparar as pessoas idosas, dando-lhe dignidade e bem estar (art. 230, caput, da CF/88).
Nesse sentido, a legislação é tácita ao dispor a revogação da doação pela ingratidão cometida pelo neto em face da avó.

Art. 555 do CC – a doação pode ser revogada por ingratidão do donatário, ou por inexecução do encargo.

Ora, do caso narrado, é notório a insensibilidade e o desrespeito do neto ao valor ético-jurídico que a sociedade cultiva. A ingratidão está demonstrada. Nas palavras de Ricardo Fiuza, “a ingratidão é causa extintiva, superveniente, da doação, equivalente à revogação das liberdade do testador ou da deserdação do herdeiro legítimo” (FIUZA, 2008. p. 506).
Nesse sentido, transcreve-se a brilhante decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina:

AÇÃO DE REVOGAÇÃO DE DOAÇÃO C/C PERDAS E DANOS - IMÓVEL DOADO COM RESERVA DE USUFRUTO VITALÍCIO PARA A DOADORA - DONATÁRIOS QUE SE MUDAM PARA O IMÓVEL, PASSANDO A AGREDI-LA MORAL E FISICAMENTE - INGRATIDÃO COMPROVADA - PROVA TESTEMUNHAL HARMÔNICA - RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO."Sendo a doação um benefício, claro é que, aceitando-a, contrai o donatário a obrigação moral de ser grato ao benfeitor, a quem se deve mostrar reconhecido. (...) Do ponto de vista jurídico, a gratidão é obrigação de não fazer assumida pelo gratificado, que deve se abster da prática de certos atos, que constituam desapreço e prova de ingratidão. Aí está a razão por que, em tal matéria, íntima é a relação entre o direito e a moral" (MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1967, vol. 5, p. 139). (TJSC – AC. 2001.008202-0 de Capital. Rel. Orli Rodrgues. Órgão Julgador: Primeira Câmara de Direito Civil, j. 04.09.2001) grifou-se.

CIVIL. AÇÃO DE REVOGAÇÃO DE DOAÇÃO FULCRADA NA INGRATIDÃO. PROPRIEDADE DOADA AOS RÉUS ATRAVÉS DE ESCRITURA PÚBLICA DE DOAÇÃO DE BENS IMÓVEIS COM RESERVA DE USUFRUTO VITALÍCIO. TRANSFERÊNCIA DE VEÍCULO ASSINADA EM FAVOR DOS RÉUS. PRIMEIRO RÉU SOBRINHO DOS DOADORES, QUE SEMPRE PRESTOU SERVIÇOS GRATUITOS À AUTORA E SEU FALECIDO ESPOSO. ALEGAÇÃO DE QUE, APÓS A DOAÇÃO, OS RÉUS PRATICARAM ATOS QUE DESAGRADARAM À AUTORA. INGRATIDÃO NÃO COMPROVADA NOS AUTOS. ROL TAXATIVO PREVISTO NO ARTIGO 557 DO CÓDIGO CIVIL. ÔNUS DA PROVA DO DOADOR. AUSÊNCIA DE PROVA DE QUE HOUVE VÍCIO DE CONSENTIMENTO NA ÉPOCA DA DOAÇÃO E DA TRANSFERÊNCIA DO VEÍCULO. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.1. A REVOGAÇÃO da DOAÇÃO, prevista no artigo 555 do atual Código Civil só é autorizada quando comprovada nos autos a INGRATIDÃO dos donatários.2. As hipóteses previstas no rol do artigo 557 do CC são taxativas, e o ônus da prova cabe ao doador. (TJSC – AC 2009.006992-2 de Jaraguá do Sul. Rel. Marcus Tulio Sartorato. Órgão Julgador:Terceira Câmara de Direito Civil, j. 24.09.2009) grifou-se.

CIVIL. AÇÃO ANULATÓRIA DE ESCRITURA PÚBLICA DE DOAÇÃO. IMÓVEL DOADO COM RESERVA DE USUFRUTO VITALÍCIO PARA O DOADOR. SUPOSTOS VÍCIOS DO NEGÓCIO JURÍDICO, EM FACE DA CONDIÇÃO DE ALCOOLISTA DO DOADOR. INCAPACIDADE RELATIVA DEMONSTRADA. DONATÁRIA QUE NÃO PRESTA OS DEVIDOS CUIDADOS AO DOADOR. INGRATIDÃO COMPROVADA. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.
Existindo prova inequívoca de que o doador não tinha capacidade de discernimento quando da realização da escritura de doação, em razão do alcoolismo, correta a anulação do negócio jurídico realizado."Sendo a doação um benefício, claro é que, aceitando-a, contrai o donatário a obrigação moral de ser grato ao benfeitor, a quem se deve mostrar reconhecido. Do ponto de vista jurídico, a gratidão é obrigação de não fazer assumida pelo gratificado, que deve se abster da prática de certos atos, que constituam desapreço e prova de ingratidão. Aí está a razão por que, em tal matéria, íntima é a relação entre o direito e a moral" (Washington de Barros Monteiro). (TJSC – AC 2007.062049-4 de Joinville. Rel. Luiz Carlos Freyesleben. Órgão Julgador: Segunda Câmara de Direito Civil, j. 28.01.2010) grifou-se.

Com isso, torna-se nula Escritura Pública de doação com cláusula de usufruto pelos elementos constantes na narrativa em consonância com o disposto em lei. Sem esquecer de mencionar que é nula a doação realizada sob o único imóvel do doador, quando este não possui outro meio de subsistência:

Art. 548 do CC – é nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador.

Essa restrição imposta, só é afastada quando há reserva de usufruto vitalício e esse usufruto assegure ao doador os meios de sustento de vida, o que de fato, não se visualiza nos fatos narrados.
Por fim, em relação a alegação do neto, de que o mesmo gastou R$ 8.000,00 (oito mil reais) para reforma da edificação, quero lembrá-lo que conforme previsão legal do art. 1.402 do Código Civil – o usufrutuário não é obrigado a pagar as deteriorações resultantes do exercício regular do usufruto, ou seja, na lição de Paulo Nader, “quando a deterioração decorre do aproveitamento natural e regular da coisa, ao usufrutuário não cumpre indenizar ao proprietário
[3].” Conveniente mencionar também o que escreve Washington de Barros Monteiro:

“Como se sabe, há coisas que se danificam lentamente com o uso, como a mobilha de uma casa. Nesse caso, o usufrutuário não responde pelo desgaste natural, resultante do uso regular e ordinário. Ele só responde pelas deteriorações provenientes de culpa ou dolo
[4].”

No caso em tela, no momento da reforma a avó se encontrava na condição de usufrutuária e, além do mais, não provocou o desgaste do imóvel e com isso, não pode arcar com as despesas gastas pelo neto, que demonstra má-fé no deslinde do litígio que ele próprio provocou. Sendo assim, o neto não fez mais do que a obrigação de manter preservado o imóvel enquanto nu-proprietário.

Conclusão

Ante o exposto, entendo ser pertinente para o caso em tela, que seja revogada a última Escritura Pública de doação, uma vez demonstrada a ingratidão do donatário, devendo o imóvel retornar a propriedade plena da avó.

Este é o meu entendimento, salvo melhor juízo.

Blumenau, 24 de agosto de 2010.
Jelson Styburski
OAB/SC 8094-E

[1] FIUZA, Ricardo. Código Civil Comentado. 6º ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 1.501.
[2] RODRIGUES, Silvio. Direito civil: Direito das Coisas. v.5, 27º ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2002. p 302,
[3] NEDER, Paulo. Curso de Direito Civil: direito das coisas. v 4. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 455).
[4] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: direito das coisas. v.3 37º ed. atual. por Carlos Alberto Dabus Maluf.São Paulo: Saraiva, 2003. p. 308.

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